sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A DESCOBERTA DO CINEMA: O Homem Elefante, a Laranja Mecânica e considerações sobre a (falta de) cultura passense

O ano era 2008. Após o trabalho, sempre pegava carona até em casa com um amigo.Em uma dessas caronas, ele precisou parar em uma vídeo-locadora para devolver alguns filmes. Sempre passávamos por ela na volta para casa. Em uma rua íngreme, seus dois cômodos com estantes e mais estantes de madeira rústica repletos de filmes. Achava eu que, como tantas outras,era só mais uma simples vídeo-locadora suburbana recheada de blockbusters. Acompanhei meu amigo e, logo ao entrar, uma surpresa: o som ambiente no local era The Sisters Of Mercy.Fiquei um tanto admirado e pensei “isso é irreal, alguém aqui do meu bairro conhece e gosta de uma das minhas bandas favoritas dos anos 80!”. Ainda sem entender direito se o que estava tocando era só coincidência ou não (a música poderia estar tocando em uma rádio, afinal),comecei a correr os olhos pelos filmes enquanto meu amigo fazia a devolução. E foi então que um pequeno universo alternativo se mostrou: nas estantes, li os nomes; alguns deles só conhecia vagamente de artigos e livros: Truffaut, Godard, Gaspar Noé,Fritz Lang, Win Wenders, Antonioni. E não parava por aí: Os Monty Python que há anos queria ver estavam lá, vários Hitchcock e Woody Allen também. Era uma cena, repito, irreal, que em uma cidadezinha no interior de Minas Gerais, um local abrigasse tamanho acervo de filmes Cult, artísticos e clássicos. Perdi a noção do tempo e só saí de meu estado de estupefação quando meu amigo chamou para ir embora. Na saída, despedi-me rapidamente do dono, um homem grande, de barba por fazer e com cara de (não sei dizer ao certo por quê, mas creio que um sempre reconhece o outro) cinéfilo, que ainda ouvia The Sisters Of Mercy. Laerte nasceu em São Paulo e se mudou para Passos em 2006, mesmo ano em que abriu sua vídeo-locadora . Eu havia selecionado algumas perguntas. Perguntas quadradas que poderiam ter tido respostas diretas e... quadradas. Mas o que se seguiu após a primeira indagação foi um bate–papo agradável de quase duas horas sobre cinema e cultura, em que mudávamos a conversa sobre um diretor para outro, de um filme para outro, fazendo assim conexões contínuas e intermináveis que não deixavam ar na conversa. Laerte de um lado do balcão e eu de outro, com meu caderno de anotações e um gravador sobre a mesa. Na rua, os automóveis rugiam incessantemente; no interior da locadora, All The Pretty Horses, uma banda underground de punk/glam liderada por um travesti chamado Venus Demars, tocava baixinho ...
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- Qual o seu primeiro contato com cinema? Consegue lembrar o primeiro filme que chamou a sua atenção?

Bom, a minha mãe sempre gostou muito de filme, então sempre assisti muitos: Fred Astaire, essas coisas assim, o que não é muito a minha praia hoje, mas naquela época assistia bastante. Eu gostava mais de filmes assim, e de Tubarão e tal... até o dia em que vi Laranja Mecânica(A Clockwork Orange, 1971, Cult absoluto de Stanley Kubrick – n.e.). O que mudou a minha trajetória de cinema foi esse filme. Eu tinha acabado de fazer 18 anos quando o vi em 1979.

- Pelo fato de você ter um acervo em sua maioria de filmes Cult, os locadores são diferenciados ou ainda os que alugam mais são os consumidores de blockbusters?

- É mais ou menos nivelado um e outro, até porque eu costumo forçar muito tipos de filmes mais Cult e às vezes um filme mais antigo Cult acaba sendo mais locado que um lançamento comum.

- E o que você indica quando uma pessoa chega aqui e diz que quer ver um filme mais Cult, mais diferenciado. Qual você acha que é o pontapé inicial para quem ainda não entrou nesse mundo do verdadeiro Cinema?

- Ah, eu sou fã de Felicidade(Happiness, de 1998), do Todd Solondz...

- Nossa, esse filme é realmente demais!(detona o american way of life ao mostrar a vida de personagens tortos e fracassados em busca de felicidade). E você tem o outro dele, o Histórias Proibidas(Storytelling, de 2001). Quero ver também o Bem-vindo à Casa de Bonecas (Welcome to the Dollhouse, de 1995,o primeiro longa do diretor)...

-É, fantástico! Eu já assisti em VHS, é uma pena que ainda não tenha saído no Brasil em DVD. Mas Felicidade é a Obra Prima dele, até agora.



- Agora uma pergunta que é impossível não ser feita para qualquer amante do cinema: quais os melhores para você?

- David Lynch é meu rei (e o Homem Elefante (The Elephant Man,1980) é o meu filme preferido). Mas gosto, fora o Lynch, do David Cronenberg, Luiz Buñuel e Ozu (Pai e Filha é um dos filmes mais delicados  que vi até hoje). Falando em melhores, comprei um livro do Rubens Ewald Filho (crítico brasileiro famoso por ser odiado por outros críticos e pela sua preferência por filmes Hollywoodianos e superficiais -.n.e.), onde ele faz uma lista com seus 100 melhores filmes. E ele consegue colocar 5 brasileiros. Eu analisei, fiquei pensando na coerência e vi que não tem nenhum filme brasileiro que mereça estar nessa lista. Tem Floradas  na Serra(1954, de Luciano Salce), Limite(1931, de Mário Peixoto, considerado o primeiro filme vanguardista/experimental a ser feito no país.- n.e.), O Cangaceiro (1953, de Lima Barreto), O Pagador de Promessas (1962, de Anselmo Duarte)...

- Limite e O Pagador de Promessas são clássicos...

- Dos brasileiros, O Pagador de Promessas eu acho o melhor.

- Sim, foi o único brasileiro que ganhou Cannes. Tem uma lenda que contam que Truffaut teria assistido e ao fim da película aplaudiu de pé, entusiasmado.



- É, mas mesmo assim o filme encontrou certa resistência no Brasil, por parte dos diretores do Cinema Novo, como Glauber Rocha. O mau do brasileiro é o seguinte: eles tentam ser muito literários, querem complicar muito, fazer um círculo fechado onde se acham deuses. Como o Meirelles, que é um diretor meia boca e arrogante ao extremo. Uma vez vi ele fazer um comentário sobre o Ralph Fiennes, que trabalhou com ele no  Jardineiro Fiel(The Constant Gardener,de 2005). O Fiennes, nas entrevistas, disse que adorou trabalhar com ele, que foi um prazer e tal e o Meirelles em suas entrevistas disse que não era o ator que ele queria, que ele é muito Shakespeariano e tal. Achei uma indelicadeza total. O cinema brasileiro é muito ruim. Mas às vezes a gente tem que agradar os outros. Aqui em Passos, por exemplo, se você for falar mal do Selton Mello, você não vai ser bem recebido. Como em O Cheiro do Ralo(2006, de Heitor Daglia); eu até digo que o filme é sensacional...mas não é sensacional! É só bom, razoável. Até começa bem, mas termina muito mal.Aqui é um lugar meio difícil de criticar. Por exemplo, se você está em São Paulo, você não nota esse tipo de coisa porque lá é muito grande e ninguém se interessa pelo seu sobrenome, ou de onde você veio. Aqui não; aqui querem saber de onde você é, qual o seu sobrenome... já pensou se eu morasse em São Paulo e fosse babar para todo o artista de lá, pô! Selton Mello é um ser humano e a arte não tem pátria.Pode ser americano ou judeu ou o que for. Basta fazer bem feito.


- Agora pra terminar vou parafrasear um cara que você não gosta muito, o Jean Luc Godard, que em minha opinião é o maior cineasta vivo: o cinema está morto. O que existem são filmes, mas a experiência do cinema como arte, a experiência de ir ao cinema, morreu.

- Eu não gosto muito desse Godard não.... e acho que o cinema não morre. O que está acontecendo é que infelizmente pelo nível cultural não só do Brasil como da maior parte do mundo, o que está se levando para casa pra se ver são produtos de má qualidade. Vou te dar um exemplo de uma coisa que está me deixando revoltado: Os coreanos hoje em dia fazem o melhor cinema. E o que acontece? Os americanos compram os direitos dos filmes, refilmam para o ocidente e todo mundo gosta, mas não conhecem o original coreano. Como muitas pessoas que vêm aqui: falam dos Infiltrados (The Departed, de 2006), do Scorsese. Dizem que é um puta filme, é maravilhoso...e eu digo “você sabia que essa é uma refilmagem de um filme chinês chamado Conflitos Internos (Wu Jian Dao, 2002, de Lau Wai Keung)?” e as pessoas não conhecem...

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Passos é uma cidade que sempre sofreu por falta de cultura. A prefeitura nunca deu a atenção necessária e merecida, não tem projetos satisfatórios, não toma iniciativas simples que podem fazer a diferença. Passos não tem sequer um teatro municipal, o que é vergonhoso. A verdadeira cultura daqui é feita de forma independente. Os grupos de teatro, as bandas e músicos dos mais variados estilos, escritores e demais pessoas que sozinhas sobrevivem, lutam para que a cidade tenha um suspiro de arte e beleza. Qualquer comunidade não vive apenas de comida, educação, saúde e segurança. É preciso ter Cultura. É fundamental. E Laerte contribui para o engrandecimento dessa nossa brava cultura independente ao ter uma vídeo-locadora com filmes que nenhuma outra vídeo-locadora da cidade tem, filmes que instigam ao pensamento, à reflexão, e assim,  transcendem a idéia de cinema como mero passatempo. O cinema em Passos não é só Selton Mello. Não é feito também só de blockbusters e caça-níqueis Hollywoodianos. Em um cantinho underground, o cinema vive e aguarda ser redescoberto por nós.

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 - Laerte mantém um blog onde posta dicas de filmes frequentemente .Acessem:  http://acidadedossonhos.blogspot.com/

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